No pedido de prisão de Fabrício Queiroz, o Ministério Público
do Rio aponta cinco vezes Flávio Bolsonaro como “líder de uma organização
criminosa”. É uma menção devastadora para Jair Bolsonaro. Nunca a família de um
presidente da República teve envolvimento com o crime organizado. A prisão de
Queiroz é a ponta do iceberg do maior escândalo que envolve o presidente desde
que tomou posse. Já o filho 01 é um problema desde a campanha eleitoral do pai,
quando era investigado por um suposto esquema de rachadinhas na Assembléia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O envolvimento com milícias cariocas,
que veio à tona, é o dado mais explosivo.
As revelações surgiram com a Operação Furna da Onça, um
desdobramento da Lava Jato, que apurava as movimentações suspeitas superiores a
R$ 1,2 milhão de Queiroz, detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf). Como era assessor parlamentar de Flávio na Alerj, além de
amigo de 40 anos de Jair Bolsonaro, Queiroz virou um problema e foi demitido no
final de 2018 pelo primogênito do presidente, no mesmo dia em que o pai, então
deputado federal, desligou a filha de Queiroz, Nathalia, que estava lotada no
seu próprio gabinete na Câmara. Queiroz é apontado pelo MP como o operador
financeiro do esquema das rachadinhas (desvio de parte do salário dos
servidores), quando Flávio era deputado estadual,. É suspeito dos crimes de peculato,
lavagem de dinheiro e organização criminosa entre 2007 e 2018. Ao autorizar a
sua prisão, o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, apontou repasses de
ex-assessores que superam R$ 2 milhões. Os saques totalizam quase R$ 3 milhões.
As investigações que levaram à sua captura envolveram a quebra de sigilo de 103
pessoas e o compartilhamento de provas com a Operação Intocáveis, que mirava o
miliciano Adriano da Nóbrega. A primeira ofensiva do MP cumpriu 24 mandados de
buscas em dezembro de 2019. Foi a partir dessas buscas que se chegou ao
esconderijo de Queiroz. A investigação sobre Flávio deve embasar as primeiras
denúncias a serem apresentadas à Justiça, o que deve ocorrer nos próximos dias,
envolvendo ainda outro deputado.
Divulgação UNIDOS Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro na loja de chocolates do senador em um shopping do Rio
Financiamento da milícia
Para o MP, o esquema da rachadinha não visou apenas o
benefício pessoal de Flávio. Serviu para financiar a milícia por meio de
Queiroz e do ex-policial Adriano da Nóbrega, apontado como integrante do
“núcleo executivo da organização criminosa”. Este é outro personagem que
assombra Flávio. Ex-capitão do Bope, Adriano era o líder do grupo de milicianos
e assassinos de aluguel Escritório do Crime, investigado pela participação na
morte da vereadora Marielle Franco. Adriano e Queiroz se conheceram quando serviram
juntos no 18º Batalhão da PM. Na época, Flávio homenageou Adriano com uma
comenda da Alerj, quando este estava preso, acusado de homicídio. Seu papel no
esquema de rachadinhas é grande. O MP estima que ele depositou R$ 400 mil para
Queiroz. Sua mãe foi lotada no gabinete de Flávio, assim como a ex-mulher,
Danielle Mendonça da Costa. As investigações apontam que eram funcionárias
fantasmas. Adriano foi expulso da corporação em 2014. Foragido, foi morto em
fevereiro, ao resistir à prisão na Bahia, num episódio nebuloso.
A ligação do gabinete de Flávio com milicianos não se resume
a Adriano da Nóbrega. O MP afirma que Queiroz mantém influência sobre a milícia
de Rio das Pedras, onde atuava Nóbrega. Além disso, a ISTOÉ revelou em
fevereiro de 2019 que a ex-assessora de seu gabinete na Alerj Valdenice de
Oliveira Meliga, a Val, era irmã dos milicianos Alan e Alex Rodrigues Oliveira.
Ela era uma funcionária de confiança de Flávio, que delegou a ela a
responsabilidade pelas contas de sua campanha para o Senado. A ISTOÉ obteve
pelo menos dois cheques de Flávio assinados por ela na campanha. Além do
envolvimento com milícias, Val revelou pistas sobre o uso de laranjas e
expedientes na campanha de 2018 para fazer retornar ao PSL o dinheiro do fundo
partidário. A legenda, na época, era comandada por Flávio Bolsonaro no Rio. A
conexão com milicianos é vista como o “fundo do poço” por diretores da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), que passou a enxergar fatos concretos para
embasar um pedido de afastamento do presidente.
Outro personagem na mira do MP é o advogado Luis Gustavo
Botto Maia, responsável pelas contas eleitorais da campanha de Flávio ao
Senado. Ele teria participado do planejamento e fuga de Queiroz e passou a
atuar “de forma criminosa” no esquema. De acordo com as investigações, Botto
Maia e Queiroz atuaram para atrapalhar as investigações sobre folhas de ponto
de funcionários da Alerj. Também teria participado de um plano de fuga de
Queiroz e de sua mulher Márcia Oliveira de Aguiar, com a ajuda de Raimunda
Veras Magalhães, mãe de Adriano, antes de sua morte. O advogado ainda teria se
reunido em dezembro com o “Anjo” (codinome de Frederik Wassef, ex-defensor de
Flávio e do pai) e com Queiroz, em Atibaia. Foragida, Márcia frequentou a casa
de Atibaia, conforme confirmou a advogada Ana Flávia Rigamonti, que trabalhou
com Wassef.
ara o MP, as atividades bancárias de Queiroz comprovam que
transferia parte dos recursos ilícitos desviados da Alerj diretamente ao
patrimônio familiar de Flávio, mediante depósitos e pagamentos de despesas
pessoais. Os investigadores detectaram pelo menos 116 boletos bancários
referentes ao custeio do plano de saúde e das mensalidades escolares das filhas
dele e da sua esposa, Fernanda Bolsonaro, com dinheiro em espécie. A suspeita
dos promotores é que despesas no valor total de R$162 mil podem ter sido
quitadas por Queiroz. O MP conseguiu imagens do circuito interno de uma agência
bancária dentro da Alerj que mostram o momento em que Queiroz pagou dois
boletos escolares das filhas de Flávio em dinheiro vivo, em 2018. Não é o único
caso em que há operações suspeitas feitas com dinheiro vivo. O Coaf identificou
48 depósitos de R$ 2 mil cada, num total de R$ 96 mil, nas contas de Flávio. As
investigações concluíram ainda que houve indícios de lavagem de dinheiro em
outros bens adquiridos pelo senador. É o caso do pagamento de R$ 31 mil, em
espécie, a uma corretora de valores, feito para cobrir prejuízos financeiros
referentes a investimentos que Flávio e Carlos Bolsonaro fizeram na Bolsa de Valores.
Também há outros indícios. O dinheiro supostamente também era
lavado por meio de uma loja de chocolates num shopping do Rio — que recebia
aportes maiores do que o faturamento — e aplicado em imóveis. Entre 2010 e
2017, o senador comprou 19 imóveis por R$ 9 milhões. Segundo os promotores,
lucrou R$ 3 milhões em transações imobiliárias com suspeitas de “subfaturamento
nas compras e superfaturamento nas vendas”. O MP analisou 37 transações
imobiliárias do senador entre 2005 e 2018. As suspeitas sobre essas transações
vão ser aprofundadas nas próximas etapas da investigação.
Flávio até agora conseguiu se livrar do único inquérito
conduzido pela Polícia Federal no Rio de Janeiro, a apuração de falsidade
ideológica para fins eleitorais, que se refere ao financiamento para a
aquisição de um imóvel. O senador atribuiu valores distintos a um mesmo imóvel
nas declarações de bens entregues à Justiça Eleitoral nas eleições de 2014 e
2016. A PF já pediu o seu arquivamento. O promotor eleitoral do caso avalizou o
arquivamento. O juiz Itabaiana, que também conduz a apuração da “rachadinha” na
27ª Vara Criminal, submeteu o arquivamento à Câmara do MPF.
O filho 01 do presidente tenta se desvencilhar da imagem de
Queiroz, sem sucesso. Após a revelação de um áudio em que Queiroz dá
orientações sobre como conseguir nomeações em gabinetes no Congresso, em
outubro de 2019, o senador afirmou que não tinha mais “nenhum tipo de contato”
com o ex-assessor. Em maio, defendeu Queiroz e o chamou de um “cara correto e
trabalhador”. Tentou bloquear as investigações do MP várias vezes. Em julho de
2018, conseguiu que o ministro Dias Toffoli, do STF, suspendesse todas as
investigações no País que tinham como base dados compartilhados pelo Coaf sem
autorização prévia da Justiça. A medida só foi revertida pelo plenário da corte
em novembro, quando as investigações puderam ser retomadas. Em dezembro, o
cerco começou a se fechar. O filho do presidente ainda aposta que o MP não vai
conseguir apresentar sua denúncia. Conseguiu na quinta-feira, 25, um habeas
corpus no Tribunal de Justiça do Rio que trava o processo, ainda que as provas
tenham sido preservadas. Alegou ter direito ao foro privilegiado, pois os fatos
investigados ocorreram quando era deputado estadual. É um alívio provisório. Ao
mesmo tempo, mudou de tática. Depois da prisão de Queiroz e do afastamento do
advogado Frederik Wassef, pediu para ser ouvido no inquérito.
Bolsonaro acuado
Jair Bolsonaro sustenta que não tem ligação com o escândalo
do filho. Mas suas digitais estão por toda parte. Pouco antes de assumir,
tentou explicar o repasse de R$ 24 mil de Queiroz para a conta da primeira-dama
Michelle Bolsonaro. Disse que o valor se referia ao pagamento de empréstimo não
declarado de R$ 40 mil. Entre os supostos funcionários fantasma do gabinete do
filho, dez eram da família Siqueira, de Resende, no Rio. Todos são parentes de
Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher do presidente. A ligação com Queiroz é
notória. O mandatário já admitiu que a condecoração a Adriano da Nóbrega na Alerj
ocorreu a seu pedido. Naquela época “Adriano era um herói”, disse. Mas o
presidente nega ter ligação com milicianos.
O presidente, seus familiares e apoiadores estão cada vez
mais acuados pelas várias investigações no STF: de interferência na PF, o inquérito
das Fake News e o inquérito sobre atos antidemocráticos. Com o avanço das
investigações sobre Flávio, Bolsonaro moderou os ataques ao STF e tem evitado
aparições públicas. Sentindo o risco para o seu mandato, tem procurado reforçar
a aproximação com o Centrão. As investigações contra o filho também abalaram a
confiança dos militares. Diante do que já se sabe e do que está por vir, sua
situação se deteriora. Um dos últimos pilares para o seu apoio era o combate à
corrupção, imagem que conseguiu sustentar enquanto Sergio Moro era ministro.
Não mais. As suspeitas só aumentaram desde a descoberta do esquema de laranjas,
ainda durante a campanha eleitoral. Os rolos de Flávio estão colocando à prova
sua autoconfiança caudilhesca, amparada na família e nos amigos.
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