Com o aumento de infectados, os hospitais estão próximos do limite de capacidade de atendimento
A situação da covid-19 voltou a se agravar na Europa e nos Estados Unidos há algumas semanas. Com o aumento de infectados, os hospitais estão próximos do limite de capacidade de atendimento. Para evitar um desastre ainda maior, líderes de nações como Reino Unido, Espanha e França decretaram toques de recolher e lockdowns.
Mas alguns indicadores sinalizam que o Brasil também pode
estar à beira de uma segunda onda: informações vindas de hospitais particulares
de São Paulo já registram um aumento do número de internações a partir da
segunda ou da terceira semana de outubro.
O mesmo fenômeno ainda não foi observado na rede pública.
Mas, se o comportamento dessa eventual segunda onda for igual à primeira, os
números nessas instituições também apresentarão uma elevação em breve.
De acordo com epidemiologistas e matemáticos ouvidos pela BBC
Brasil, é praticamente impossível impedir que esse rebote ocorra, como mostram
experiências com pandemias do passado e a atual situação europeia. A
dificuldade maior está em prever quando ela exatamente vai começar.
"Isso depende de uma série de fatores, como a mobilidade
de pessoas e a atividade econômica das cidades, sobre os quais não temos
controle nenhum", admite o físico Silvio Ferreira, especializado em
sistemas complexos e modelagem epidêmica e professor da Universidade Federal de
Viçosa (MG).
Alguns cálculos indicam que a situação da pandemia em certos
lugares do Brasil já está se agravando agora, quase como se estivéssemos
emendando a primeira e a segunda onda.
Os gráficos sobre a incidência de Síndrome Respiratória Aguda
Grave (SRAG), que são um indicativo sobre o estágio mais sério das doenças
infecciosas que afetam nariz, garganta e pulmões (caso de gripe e covid-19),
voltou a subir substancialmente nas últimas semanas em cidades como
Florianópolis.
Os números de casos confirmados de covid-19 estão em alta em
outros locais, como na Grande São Paulo e nos Estados do Paraná e Rio Grande do
Sul.
"O cenário ainda não está igual ao da Europa e ainda não
temos dados oficiais, mas pelo que estamos vendo e ouvindo dos colegas, os casos
parecem já estar subindo de novo em alguns locais", observa o médico José
Luiz de Lima Filho, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco.
Ingredientes para a piora do cenário
Algumas projeções indicam que essa segunda onda pode ser agravada
pelo final do ano, quando muitas pessoas vão viajar e se reunir com familiares
e amigos para celebrar as festas ou aproveitar os dias de calor.
Outro fator que pode pesar no futuro é a chegada de
temperaturas mais frias a partir de março e abril de 2020. Durante o outono e o
inverno, as aglomerações em locais fechados se tornam mais frequentes, o que
favorece a disseminação do vírus.
Não dá para ignorar também o relaxamento das regras para o
funcionamento de estabelecimentos comerciais e o cansaço das pessoas em
continuarem em isolamento, por mais que ele continue necessário.
Diante de tantas possibilidades, a única certeza que os especialistas
possuem é que o Brasil tem uma chance de se organizar bem pelas próximas
semanas para criar ações e políticas capazes de diminuir infecções, internações
e óbitos.
"Precisamos usar a ciência e os modelos preditivos para
entender o que pode acontecer num futuro próximo. A partir daí, podemos lançar
mãos de medidas que mitigam o impacto da covid-19 em nossa realidade",
analisa o matemático Eliandro Cirilo, da Universidade Estadual de Londrina
(PR).
Confira abaixo sete ações que podem fazer a diferença na
força que uma segunda onda terá no Brasil:
1. Melhorar o acesso e a qualidade dos dados
Ainda que o Brasil tenha uma estrutura considerável de
informações na área da saúde, matemáticos, epidemiologistas e gestores públicos
ainda encontram dificuldade para fazer comparações entre diferentes cidades e
regiões ou colocar em práticas as ações corretas para cada estágio da pandemia.
"O grande problema está na qualidade dos dados. Não
temos certeza sobre a precisão deles ou a frequência com que são
disponibilizados. Durante uma pandemia, não basta saber que ocorreram 100 mil
casos. Precisamos entender quando eles aconteceram, a faixa etária dos
acometidos, sua localização, a gravidade?", exemplifica Ferreira.
O ideal seria que todos os municípios do país possuíssem um
sistema online igual (ou similar) e uma padronização de como as informações
deveriam ser preenchidas segundo alguns critérios.
Assim, os dados seriam repassados de maneira uniforme para as
cidades e os Estados até chegarem ao governo federal. Pelo que comentam
especialistas, isso ainda não está bem organizado no Brasil.
2. Considerar as realidades locais
Os epidemiologistas são unânimes em afirmar que não faz
sentido analisar um gráfico da covid-19 do Brasil todo. Cada região do país tem
sua própria característica e apresenta particularidades sobre os números de
casos, hospitalizações e óbitos.
"Quando analisamos um país continental como o Brasil, o
gráfico pode ser generalista demais. A soma do que ocorre em todos os Estados
acaba não representando nenhum Estado. É necessário analisar lugar a lugar para
entender o que está acontecendo", constata o cientista de dados Isaac
Schrarstzhaupt, da Rede Análise Covid-19.
Em alguns locais, como Manaus e Belém, por exemplo, houve um
pico de infectados e mortos. Passadas algumas semanas, a curva caiu e ficou
relativamente controlada. Outros lugares, como São Paulo, vivenciaram um platô
alto de indivíduos afetados durante muitos meses. Os números não baixaram, nem
subiram: ficaram praticamente nivelados por um longo período.
É necessário, portanto, levar em conta cada cidade, Estado ou
região na hora de implementar ou reforçar as regras que restringem a circulação
de pessoas. "Precisamos desenvolver algum tipo de medida customizada que
permita relaxar ou endurecer as políticas de acordo com o estágio da pandemia e
com a realidade local", pensa Cirilo, da Universidade Estadual de Londrina
(PR).
Essa foi a estratégia usada em outubro na cidade de Nova
York, nos Estados Unidos: o prefeito propôs que os bairros onde o coronavírus
estava em maior circulação, como Brooklyn e Queens, tivessem o comércio e as
escolas fechadas.
3. Ampliar a testagem
"Onde a gente não faz testes, não encontra casos",
raciocina Ferreira. A única maneira de entender o real cenário da pandemia é
criar um programa de testagem populacional, incluindo as pessoas que não
apresentam sintomas sugestivos.
Só assim será possível detectar os casos assintomáticos ou
com poucos sinais, que representam a grande maioria dos infectados. Apesar de
não sofrerem grandes abalos na própria saúde, essas pessoas podem transmitir o
vírus para outras.
Vamos aos números: de acordo com o site Worldometers, o
Brasil tem cerca de 5,3 milhões de casos confirmados de covid-19 e 164 mil
mortos. Desde março, o país realizou 21 milhões de testes.
Apesar de ser a terceira nação com os números mais altos da
pandemia (só fica atrás de Estados Unidos e Índia), nosso país ocupa a 98ª
posição no ranking de exames feitos em relação ao tamanho da população.
Aparecemos atrás de nações como Colômbia, Omã e Bósnia e Herzegovina.
E há outro agravante nessa história: cerca da metade dos
testes feitos no Brasil são os rápidos, aqueles que só informam se a pessoa já
teve covid-19 no passado, não se ela está com o vírus naquele momento. Para
descobrir a doença ativa, a OMS (Organização Mundial da Saúde) preconiza o
exame conhecido pela sigla PCR.
A testagem em massa permite ter um panorama mais certeiro de
como está a situação e quais ações são necessárias para conter a disseminação
do coronavírus. Foi o que aconteceu na cidade de Kashgar, na China, na última
semana de outubro: após um surto local, as autoridades fizeram 4,7 milhões de
testes de uma só vez.
"A China tem feito isso com regularidade. Quando eles
detectam um aumento pequeno de casos de covid-19 num lugar, fazem milhões de
testes para flagrar aqueles indivíduos que estão assintomáticos. Eles são
isolados, o que interrompe a cadeia de transmissão", contextualiza
Schrarstzhaupt.
4. Isolar e rastrear contatos
Vamos supor que o programa de testes em larga escala
estivesse implementado. Qual seria o próximo passo? Isolar aqueles que foram
diagnosticados com a covid-19.
Os protocolos mais bem-sucedidos indicam que esses indivíduos
devem ficar em casa (se possível, em um quarto sem contato com familiares ou
amigos) pelas próximas duas semanas. Se, no meio do processo, os sintomas se
agravarem ou aparecer falta de ar, é preciso buscar a orientação médica ou o
pronto-socorro.
O terceiro passo dessa estratégia é o rastreamento. Na
prática, isso significa perguntar aos pacientes recém-diagnosticados com quem
eles tiveram contato físico nos últimos dias. Essas pessoas são, então,
avisadas e orientadas a fazer uma quarentena ou realizar os exames.
Testar, isolar e rastrear, inclusive, são as ações que permitem
a países como Tailândia e Nova Zelândia o controle da covid-19 dentro de seus
territórios.
5. Coordenar as ações
Em meio à maior pandemia do século, o Brasil teve três
ministros da saúde e acompanhou de perto brigas públicas entre prefeitos,
governadores e o presidente Jair Bolsonaro.
A falta de coordenação entre setores do poder público no país
fica evidente em um estudo feito pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, a
partir de dados fornecidos pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
Eles fizeram entrevistas com prefeitos ou gestores de saúde de 4.061 cidades
brasileiras entre março e agosto de 2020.
A principal conclusão do trabalho é que a maioria dos locais
até adotou medidas de contenção (como fechamento de escolas e do comércio), mas
não houve nenhuma decisão conjunta entre municípios vizinhos — portanto, havia
um total descompasso que não respeitava as realidades regionais.
A limitação da circulação de pessoas também parece ter durado
pouco tempo: logo no final de março, a maioria das cidades já começou a
flexibilizar suas regras por causa da pressão das empresas e dos cidadãos. Tudo
isso foi feito sem nenhuma sincronia com os governos estadual ou federal.
6. Divulgar orientações claras sobre as medidas básicas de
proteção
"As pessoas estão cansadas e estressadas com toda a
situação. Por outro lado, muitas não têm como sobreviver se ficarem em casa.
Elas não têm escolha: vão às ruas e se arriscam para garantir o sustento, mesmo
com o risco de se infectar", constata Cirilo.
Agora imagine o barril de pólvora que pode ser criado quando
os gestores precisarem retomar as medidas mais restritivas para barrar a
segunda onda? Na Europa, os toques de recolher e as quarentenas motivaram uma
série de protestos e confrontos com a polícia.
Para evitar o mesmo efeito aqui no Brasil, é urgente pensar
em formas de comunicar à população a necessidade de novas restrições.
"Devemos explicar de alguma maneira que talvez seja melhor paralisar as
atividades agora do que fechar tudo por muito mais tempo daqui a três
meses", propõe Schrarstzhaupt.
Outro ponto que merece reforço constante por meio de
campanhas públicas são as medidas individuais de proteção. "Vamos
continuar a manter a distância segura dos outros, usar máscaras e lavar sempre
as mãos", orienta Lima Filho.
7. Se antecipar à dinâmica da doença (e ao comportamento das
pessoas)
Os especialistas sugerem que os gestores de saúde pública não
tomem decisões precipitadas ou atrasadas e acompanhem a dinâmica da doença. Mas
o que significa isso?
"Há uma latência natural, uma demora, para começarmos a
ver os efeitos de uma segunda onda. Existe um tempo até o exame ser feito, ele
ser analisado e sair o resultado", observa o especialista em ciência da
computação Jones Oliveira de Albuquerque, do Departamento de Estatística e
Informática da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
A demora não se limita ao diagnóstico: entre o aparecimento dos primeiros sintomas, o agravamento do quadro, a internação e a morte (ou a recuperação e a alta), o processo todo leva quatro semanas ou mais.
Portanto, os impactos de uma segunda onda sobre a mortalidade
só são percebidos muito tempo depois. Se as autoridades esperarem para agir,
será tarde demais.
"Nossos representantes deveriam estar pensando desde
ontem em como capacitar o sistema de saúde e reabrir ou ampliar hospitais e
UTIs", alerta Lima Filho.
Por fim, é importante prestar atenção no comportamento das
pessoas. Além do cansaço natural com a pandemia e as restrições que ela
demanda, a tendência é que mais gente viaje para curtir o verão e as festas de
final de ano com amigos e familiares. Isso pode ser evitado de alguma forma?
Na sequência, depois dos meses de calor, a temperatura vai
cair. Como evitar que as pessoas se aglomerem em locais fechados, onde o risco
de transmissão do coronavírus é alto?
Essas são algumas perguntas para as quais as autoridades
brasileiras precisam encontrar respostas com rapidez.
Fonte: Viva Bem
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