Levantamento feito pelo Globo com os estados aponta que 1 em cada 1.341 pessoas imunizadas não seria do grupo prioritário
RIO — Desde o início da vacinação contra a Covid-19 no país,
em 17 de janeiro, já foram registradas ao menos 2.982 denúncias de possíveis
casos de “fura-fila” da imunização — o que significa que uma em cada 1.341
doses aplicadas no país teria sido endereçada a alguma pessoa fora dos padrões
de prioridade estabelecidos.
Faça o teste: Qual é o seu lugar na fila da vacina?
Entre os estados com mais relatos de infrações estão o Rio
Grande do Norte, com 640; Minas Gerais, com 589; e Rio de Janeiro, com 413.
Os dados foram levantados pelo Globo junto aos Ministérios
Públicos e às Ouvidorias Gerais dos estados e fazem parte de um cenário de escassez
de imunizantes e problemas de planejamento e distribuição.
Entenda o debate: Quem
furou a fila da vacina contra a Covid-19 deve receber a segunda dose?
Especialistas dizem que este já era um tipo de fraude
esperada e ressaltam que os casos de fura-filas podem ser ainda mais numerosos
no país. Isso porque moradores de muitos municípios podem temer denunciar ou
nem sequer ter acesso a mecanismos de denúncia. Além disso, os diferentes
critérios de prioridade para vacinação de cada município dificultam a
fiscalização e o trabalho dos MPs.
Os MPs e as secretarias de Saúde vêm investindo em canais
para receber denúncias da população, por e-mails ou mensagens de WhatsApp. Os
relatos recebidos vão para as promotorias, que seguem com as investigações.
— São mais de 2.500 pessoas que passaram à frente de outras
2.500 que poderão morrer da doença, em um ímpeto egoísta — observa o professor
da Escola Paulista de Medicina da Unifesp Gabriel Maisonnave, que reitera a
importância de se resolver urgentemente o problema de escassez de vacinas e
agilizar a imunização, que ele considera muito lenta.
Impacto individual
A epidemiologista Carla Domingues, coordenadora do Programa
Nacional de Imunizações (PNI) entre 2011 e 2019, chama a atenção para os danos
pessoais do ato de furar a fila. À medida que se deixa de vacinar alguém de
risco, diz ela, cria-se uma “desigualdade que privilegia quem não está em risco”.
Domingues, no entanto, diz que o país enfrenta uma escassez
de doses tão grande que essas infrações, por enquanto, não terão impacto a
nível populacional. De acordo com ela, ainda não é possível falar em proteção
coletiva.
Ela ressalta ainda que um dos principais problemas hoje é a
enorme diferença de critérios adotados por municípios para a vacinação, o que
confundiria a população e deixaria brechas para fraudes.
— O Ministério da Saúde delegou para os estados e municípios
decidirem seus critérios de prioridade. Isso torna a campanha desorganizada e
sem efetividade. Para se ter a compreensão da sociedade de que devem ser
imunizadas as pessoas com risco, a comunicação tem de ser uniforme, e não cada
lugar com uma estratégia, inclusive deixando políticos serem vacinados. E é
preciso ser transparente com a população: dizer “não tem vacina suficiente”.
Maisonnave lembra que as secretarias municipais de Saúde já
tinham informações sobre as populações a serem vacinadas, principalmente sobre
idosos, devido à experiência prévia com a vacinação anual da gripe.
— Já havia listas prévias, baseadas na vacinação da gripe. O
quantitativo de vacina contra a Covid-19 estava espelhado no que se sabia, de
uma população de 60 milhões de idosos. Ninguém pode reclamar de falta de
informação. Mas há muitos problemas no processo, os profissionais de saúde
estão exaustos.
O Ministério da Saúde disse orientar que estados e municípios
sigam as orientações coordenadas pelo PNI, que prevê ciclos de vacinação de
acordo com os grupos prioritários definidos em estudos populacionais. A pasta
reiterou que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) é “tripartite”, ou seja,
os municípios têm autonomia para executar o processo de vacinação, e que é
importante que os cidadãos informem possíveis irregularidades às secretarias de
Saúde.
Como muitas denúncias ainda estão sob investigação, os MPs
ainda não apontam os principais “furadores de fila”. Mas, entre os nomes já divulgados
pela imprensa, há anônimos, funcionários públicos e seus familiares e
políticos. No Piauí, por exemplo, prefeitos de duas cidades do interior do
estado estão sendo investigados pelo MP após denúncias de que teriam tomado o
imunizante mesmo não fazendo parte do grupo de risco.
Fila da vacina:
Ministério da Saúde já recebeu 45 pedidos para prioridade, de produtores
rurais a aeronautas
No Amazonas, quatro estudantes da área da Saúde, dois
advogados e um casal proprietário de uma empresa de alimentos estão entre os
que não deveriam ter recebido o imunizante.
No Acre, a esposa de um ex-comandante da Polícia Militar e
estudante de psicologia foi acusada de furar a fila após postar uma foto sendo
imunizada na Policlínica da PM-AC, em Rio Branco.
Os casos que chegam aos MPs são encaminhados para as
promotorias para investigação. Se confirmada a ilegalidade, é feita uma
denúncia criminal ou é aberta ação por improbidade administrativa.
Impasse jurídico no AM
No Amazonas, que sofre com o número de casos de Covid-19 e
escassez de recursos de saúde e onde a ocorrência da nova variante do
coronavírus preocupa especialistas e põe em cheque a vacinação, o MP informa
que todas as apurações com relação a possíveis irregularidades na imunização
estão paradas. Isso ocorre por conta de um impasse jurídico.
O MP está esperando a decisão do Tribunal de Justiça do
Amazonas para definir se o processo de investigação fica no âmbito estadual ou
se vai para o federal. Entre dias 1o e 3 de janeiro, a Ouvidoria-Geral do MP
contabilizou 393 relatos recebidos e cadastrados no SAJ/MPAM.
Os MPs de Amapá, Roraima, Alagoas, Piauí e Sergipe não
responderam ao GLOBO.
Colaborou Ana Beatriz Moda, estagiária, sob supervisão de
Eduardo Graça
FONTE:O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário