Maio Laranja conta com campanhas, lives e cartilha atualizada
Há exatos 48 anos, a pequena Araceli desapareceu em Vitória,
no Espírito Santo. Só foi encontrada seis dias depois. Espancada, estuprada,
drogada e morta. Seu corpo foi desfigurado com ácido. Os suspeitos foram
absolvidos e o crime, arquivado. A data do assassinato ficou marcada e, no ano
2000, foi instituído o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes, lembrado ontem (18).
O assassinato brutal
de Araceli é apenas a faceta de um crime que acontece diariamente dentro dos
lares. Nem todos terão esses requintes de crueldade e nem todos serão cometidos
por psicopatas ou pessoas fora da lei. A maioria deles vai ocorrer com quem já
tem a confiança da criança. “Infelizmente o pedófilo, o abusador, ele está
dentro de casa ou frequenta a casa ou faz parte do núcleo familiar em que
aquele menor convive”, afirma Raquel de Andrade, presidente do Instituto
Infância Protegida, organização não governamental (ONG) do Espírito Santo que
dá amparo jurídico e psicológico a crianças, adolescentes e adultos vítimas de
violência sexual.
Foi exatamente o que aconteceu com M.C, hoje com 31 anos.
“Não sei ao certo em qual idade começaram os abusos, tenho alguns flashes de
cenas aos 8 ou 9 anos. Um amigo do meu pai, devia ter seus 60 anos, alcoólatra
e fumante (digo isso porque o cheiro dele não esqueço) me pegava em um canto,
em churrascos nos finais de semana, onde todos os adultos estavam, sem
condições de zelar pelo bem-estar das crianças. Fazia isso comigo e com a minha
irmã ao mesmo tempo”, lembra. Infelizmente, esse não foi o único episódio de
abuso pelo qual ela passou: “Pouco tempo depois, um professor particular me
dava aulas de violão em casa. Eu com 11, ele com 35. Ele me disse, depois de
uma aula, que eu era muito bonita, que tinha um estilo legal e me pediu um
beijo”, relata.
Os abusos deixaram marcas. “Aos 11, eu me cortava e pensava
bastante em suicídio”. Mesmo assim, seu pai não acreditou. Obrigou M.C. a
conviver com o amigo abusador até que ele morresse. “Me levou ao velório, inclusive.”
Aos 13, mais uma vez, M.C. foi vítima de quem mais confiava.
Dessa vez, uma amiga, com 25 anos, que a convidou para passar a semana em sua
cidade. “Quando cheguei, ela me mostrou vídeos pornôs e prostitutas na rua, me
explicou o que era sexo porque eu ainda não sabia bem. Me oferecia bebidas e
drogas, fazia com que eu me sentisse descolada e importante. Tive relações com
o seu irmão, foi a minha primeira vez. Chorei assim que acabou.”, lembra.
Depois disso, a amiga a convenceu a manter relações com outras pessoas. Mesmo
traumatizada, M.C. acreditava que tinha se tornado adulta e experiente. Só anos
depois, percebeu que havia sido aliciada. “Sinto que um pedaço de mim, que me
trazia inocência e vivacidade, foi roubado antes que eu tivesse consciência
dele”, lamenta.
A presidente do Instituto Infância Protegida vai além quando
diz que não existe perfil de abusador: embora a maioria seja do sexo masculino,
mulheres também abusam, como babás, funcionárias de creche, mães, avós. “Um
caso em especial que estamos cuidando é o de uma que mãe precisava trabalhar e
deixou a criança com a avó. A avó estava abusando da criança”, conta.
Para se ter uma ideia do volume de abusos, de 2011 ao
primeiro semestre de 2019, foram registradas mais de 200 mil denúncias de
violência sexual contra crianças e adolescentes, segundo dados da Ouvidoria
Nacional dos Direitos Humanos, por meio do serviço Disque 100.
Como perceber – De
acordo com Elaine Amazonas, assistente social e gerente de projetos na Bahia da
ONG Plan International, que promove os direitos das crianças, identificar os
sinais de um abuso não é fácil pois, na grande maioria das vezes, o abusador
não deixa sinais físicos. Segundo ela, é preciso estar atento às mudanças
repentinas de comportamento: “Muitas vezes a criança se apresenta mais
irritadiça, apresenta ansiedade, dores no corpo, na cabeça, barriga, sem uma
explicação mais lógica. [Apresenta] alterações gastrointestinais. Raiva,
rebeldia. Muitas crianças ficam mais introspectivas, não querem conversar, têm
pesadelos constantes voltam a fazer xixi na cama, chupar dedos”, enumera.
Raquel Andrade acredita que importantes formas de prevenção
são a cumplicidade e o diálogo constante com os filhos: “Que os pais se
esqueçam um pouco deles e se doem mais aos filhos. Tem pai que acha que é
perder tempo sentar junto com o filho. Não é perder tempo, é qualidade de vida,
é salvar o seu filho, é salvar a sua filha. Então senta, conversa, mostra os
perigos que eles estão correndo. Quem sabe isso seja uma forma de evitar um mal
pior”, diz. Ela orienta que, durante essas conversas, os pais expliquem às
crianças que não é qualquer pessoa que pode tocar nelas, que não devem
conversar com estranhos nem mesmo pela internet.
A presidente do Instituto Infância Protegida lembra que hoje
já existem aplicativos para computadores e dispositivos móveis que podem
rastrear tudo que a criança vê e com quem ela conversa: “Os pedófilos muitas
vezes se escondem atrás da tela de um computador, de um celular, de um tablet
achando que internet é terra de ninguém. Então, a prevenção é muito
importante”.
Cartilha – A
Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do governo federal
atualizou a cartilha com informações sobre abuso sexual. Nela constam
informações como os conceitos de abuso e exploração sexual de crianças e
adolescentes, mitos e verdades sobre esses crimes, métodos do agressor e perfil
das vítimas. “O conhecimento sobre a rede de proteção dos menores de idade
também é muito importante para estabelecer o vínculo entre o Estado e a
sociedade para o enfrentamento dos casos.”, diz o secretário nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha.
A iniciativa é uma das ações do Maio Laranja, criado
exatamente para incentivar a realização de atividades que possam conscientizar,
prevenir, orientar e combater o abuso e a exploração sexual de crianças e
adolescentes durante todo o mês de maio. Como parte das ações programadas o
governo lançou o Programa Nacional de Enfrentamento à Violência Contra Crianças
e Adolescentes.
Como denunciar – O
governo federal disponibiliza diversos de canais para atendimento às vítimas do
abuso infantil. Entre eles está a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, que
funciona por meio do serviço Disque 100 e que conta agora com números no WhatsApp
e Telegram (basta apenas digitar Direitoshumanosbrasilbot no aplicativo). “São
aplicativos onde se pode passar áudios, fotos e vídeos. A vítima pode gravar os
abusos e passar por esses canais. É uma forma de denunciar e inibir a
ocorrência de mais casos.”, afirma Maurício Cunha.
Outra forma de denunciar é buscar o conselho tutelar. Eduardo
Rezende de Carvalho, conselheiro tutelar no Distrito Federal há cinco anos,
conta como funciona o trâmite dessas denúncias. “A partir do registro, levamos
ao conhecimento da autoridade policial para fazer o corpo de delito, depois
identificamos o possível agressor, solicitamos ao Judiciário o afastamento como
medida de proteção, caso se configure o fato, e encaminhamos ao programa de
atendimento às vítimas”.
Segundo o secretário, o Brasil dispõe de uma rede de proteção preparada e capaz de
lidar com diversos graus de abusos e exploração sexual de meninos e meninas.
“Desde o ano passado, 672 conselhos tutelares já receberam veículos zero
quilômetro e equipamentos para a melhoria da infraestrutura no atendimento a
crianças e adolescentes de todo o país. Os kits foram entregues pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) nas cinco regiões do país.
O conjunto de equipamentos inclui, além dos automóveis, computadores,
refrigerador, bebedouro, smart TV, ar condicionado portátil, cadeirinha para
automóvel e impressora”, afirma.
De acordo com a gerente de Projetos da Plan International,
toda criança e todo adolescente que sofreram violência sexual precisam receber
um acompanhamento psicológico para ajudá-los a entender e ressignificar o que
aconteceu. “A gente precisa lembrar o tempo todo que a vítima não é a culpada”,
diz. Segundo ela, cada criança vai reagir de uma forma. Algumas terão o poder
de se refazer, conseguindo deixar o trauma para trás, e outras vão apresentar
problemas psiquiátricos, psicológicos, terão dificuldades em suas relações
interpessoais. “Nenhuma criança ou adolescente passa por isso incólume”, diz.
Fonte:Com a Agência Brasil
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