O ex-presidente da Federação das Empresas de Transportes de
Passageiros do Rio (Fetranspor) Lélis Marcus Teixeira, em delação premiada já
homologada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirmou que pelo menos 30
autoridades fluminenses concederam benefícios fiscais e tarifários ao setor em
troca de pagamentos sistemáticos de propina e de doações irregulares para financiar
campanhas eleitorais. Entre os citados estão os ex-governadores Anthony
Garotinho (sem partido), Sérgio Cabral (MDB) e Luiz Fernando Pezão (MDB); os
ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM) e o atual, Marcelo Crivella (PRB).
Segundo Lélis, houve iniciativas para influenciar no formato
de licitações de linhas de ônibus e barrar uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) na Câmara Municipal. O esquema teria envolvido repasses de mais
de R$ 120 milhões em 10 anos e impactou o bolso dos usuários de ônibus.
O ponto mais prejudicial aos passageiros foi o reajuste das
tarifas das linhas intermunicipais em 2017. De acordo com Lélis, a inflação no
período, calculada pelo IPCA, foi de 6,99%, mas as empresas obtiveram 14,83% de
aumento. A Fetranspor conseguiu um percentual maior alegando que seria para
cobrir gratuidades concedidas a estudantes da rede pública e pessoas com
necessidades especiais. Em 2015, segundo o delator, também houve reajuste acima
da inflação graças ao pagamento de propina para Rogério Onofre e Alcino
Carvalho, que presidiram o Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do
Rio (Detro).
Os empresários do setor também foram beneficiados com a
concessão de benefícios fiscais, como redução do IPVA e isenção de ICMS em
2014, quando políticos ligados ao ex-governador Sérgio Cabral (MDB) teriam
recebido R$ 18 milhões. Dois ex-secretários estaduais de Transportes também são
citados. Um deles é Júlio Lopes, que teria obtido R$ 7,9 milhões para suas
campanhas eleitorais por meio de uma mesada de R$ 100 mil e de propina de R$
900 mil embutida em um contrato fictício com um escritório de advocacia. O
outro nome é o de Carlos Roberto Osorio, que também foi secretário municipal de
Transportes. Ele teria recebido entre R$ 160 mil e R$ 200 mil por mês, de 2012
a 2015.
Entre os citados no esquema, além do grupo político do
ex-governador Luiz Fernando Pezão (MDB), estão dois conselheiros do Tribunal de
Contas do Estado (TCE) e três do Tribunal de Contas Município (TCM), que
recebiam “agrados” para emitir decisões favoráveis ao setor. Em um dos casos
citados na delação, o TCM arquivou um processo no qual havia suspeitas de que,
em 2010, as empresas de ônibus formaram um cartel para participar de licitações
da prefeitura. Os conselheiros Ivan Moreira, Nestor Rocha e Antonio Carlos
Flores de Moraes, relator do processo, teriam votado a favor do setor em troca
de dinheiro.
Caixa dois
Lélis contou que o ex-governador Garotinho, o prefeito
Crivella e o ex-prefeito Eduardo Paes teriam recebido recursos para suas campanhas
por meio de caixa dois. O total repassado a Garotinho teria chegado a R$ 4,3
milhões nas campanhas a deputado (2010) e a governador (2014).
Já Crivella teria recebido recursos quando concorreu à
prefeitura em 2004, ao Senado em 2010 e de novo à prefeitura em 2016. Na última
campanha, segundo Lélis, foram repassados R$ 2,5 milhões a Mauro Macedo,
tesoureiro de Crivella. O delator entregou à Justiça conversas de WhatsApp nas
quais marcava encontros com Macedo, que, ao fim da campanha, teria devolvido R$
300 mil de “sobras” ao empresário. Em relação a Eduardo Paes, o delator afirmou
que ele recebeu R$ 40 milhões em 2012 para a campanha de reeleição. O deputado
federal e ex-secretário Pedro Paulo teria ficado com R$ 10 milhões para sua
campanha à Prefeitura do Rio em 2016.
Lélis afirmou ainda, em seu depoimento à Procuradoria-Geral
da República, que um dos principais responsáveis por pagar as propinas era José
Carlos Lavouras, sócio de 19 empresas de ônibus. Com dupla cidadania, ele está
foragido em Portugal. Trechos da delação foram enviados pelo STJ à Força Tarefa
da Lava Jato no Rio e ao juiz Marcelo Bretas, que julga essas ações no estado,
para que as investigações tenham prosseguimento. O delator foi condenado em
março por Bretas a 13 anos de prisão por corrupção ativa dentro da operação
Cadeia Velha. No momento, ele está em liberdade.
Duas décadas de repasses
O esquema envolvendo políticos e empresas de ônibus durou
mais de 20 anos no Rio. A delação inclui ainda os nomes de dois ex-presidentes
da Câmara Municipal — Sami Jorge (já falecido) e Ivan Moreira (que hoje é
conselheiro do TCM) — e do atual presidente, o vereador Jorge Felippe. Ao todo,
são citados 15 vereadores e ex-vereadores, que teriam recebido de R$ 6 mil a R$
8 mil mensais para defender interesses do setor. Na Assembleia Legislativa do
Rio (Alerj), vêm à tona os nomes de oito deputados e ex-deputados, incluindo os
ex-presidentes da Casa Jorge Picciani (MDB) e Paulo Mello (MDB). A Justiça
também não escapou. Lélis relata o pagamento de até R$ 6 milhões à advogada
Glaucia Guimarães, mulher do desembargador Mario Guimarães Neto, responsável
pelo julgamento de uma ação de interesse do setor.
A arrecadação com o vale-transporte, segundo Lélis,
financiava a corrupção. Desde 1987, a Fetranspor tem exclusividade na
administração desse sistema no estado, que movimenta R$ 500 milhões por mês. A
entidade cobra uma taxa de administração de 3,5%, ficando com cerca de R$ 17,5
milhões. Seria desse percentual que sairiam os repasses para caixa dois e
outras propinas.
O que dizem os citados
A assessoria de Sérgio Cabral divulgou que o ex-governador já
prestou depoimento ao juiz Marcelo Bretas admitindo o recebimento de vantagens
indevidas e que está à disposição das autoridades. O ex-governador Anthony
Garotinho reagiu dizendo que o relato não tem fundamento. Ele afirma que o
ex-presidente da Fetranspor agiu por vingança porque, quando comandou o estado,
legalizou quatro mil vans e reduziu os preços das passagens de ônibus. O
advogado de Pezão, Flávio Mirza, disse que o ex-governador nega, como sempre
fez, o recebimento de propina.
Em nota, a assessoria de Crivella disse que a denúncia é
eleitoreira. Acrescentou que não há provas de caixa dois e que o atual prefeito
sempre brigou para o Rio ter passagens de ônibus mais baratas. Já o ex-prefeito
Eduardo Paes afirmou que todas as suas contas de campanha foram aprovadas pela
Justiça eleitoral e que lamenta ter que responder a acusações sem conhecer o
teor delas. O deputado Pedro Paulo (DEM) disse que sua campanha de 2016 foi
realizada dentro da legalidade e que todos os recursos doados foram aprovados
pela Justiça eleitoral.
A defesa do ex-deputado Jorge Piccianni informou que só vai
se pronunciar após conhecer o teor das acusações. Esse também foi o
posicionamento de Paulo Mello.
Em nota, o presidente da Câmara Municipal, Jorge Felippe
(MDB), disse que está indignado com as denúncias e que elas são mentirosas.
Segundo ele, “a Justiça não admitirá que criminosos sigam atacando autoridades
de todos os poderes em troca de benefícios, como a redução da pena ou o perdão
judicial”.
No TCM, Antônio Carlos Flores de Moraes repudiou a acusação,
afirmando que, em mais de 30 anos com conselheiro, sempre atuou dentro dos
princípios da moralidade e da legalidade. O conselheiro Ivan Moreira disse
desconhecer o teor da delação, mas que sempre agiu em defesa do interesse
público, tendo inclusive recomendando que não houvesse revisão das tarifas até
a conclusão de estudos técnicos. Nestor Rocha, por sua vez, disse não conhecer
Lélis e que vai processá-lo pelas declarações. Ele argumentou que, quando foi
vereador, sempre votou contra o interesse dos empresários.
O ex-secretário de Transportes Júlio Lopes disse que
desconhece o teor da delação premiada e que, por isso, não iria se manifestar.
Procurado, o ex-secretário de Transportes Carlos Roberto Osorio não retornou a
ligação.
A defesa de José Carlos Lavouras afirmou, em nota, que
"as acusações são irreais, sem provas e baseadas em mentiras de um delator
que busca reduzir o peso da lei sobre seus atos. A defesa informa, ainda, que
José Carlos Lavouras está afastado da gestão de suas empresas desde 2017. O
empresário vive em Portugal, de onde colabora com a Justiça".
Ex-presidentes do Detro, Rogério Onofre e Alcino Carvalho não
foram localizados.
Citado na delação por ter assinado uma sentença favorável às
empresas de ônibus que trans-feriram recursos a um escritório de advocacia
ligado à mulher dele, o desembargador Mário Guimarães Neto repudiou as
declarações de Lélis. Ele disse que não poderia ter decidido a favor das
empresas porque a ação previa licitação de linhas, o que foi feito pela
prefeitura.
Fonte: O Globo
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