Mulheres ocupam 70% dos cargos nos setores social e de saúde no mundo todo, e a maioria ainda é mãe e responsável por ocupar-se da família. Ou seja, conciliam profissão e o cuidado com o outro. Marie Claire ouviu médicas e enfermeiras que agora atendem os pacientes da pandemia de coronavírus nos hospitais brasileiros
POR MANUELA AZENHA, EM COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE
Afastar-se dos filhos, dos pais e dos avós sem saber quando e
se voltará a vê-los. Excluir-se completamente de qualquer vida social fora a do
trabalho no hospital. Deixar para o amanhã, sem que ao menos se saiba a
previsão deste amanhã, todos os prazeres e deleites de uma vida
"normal". E aí, pense, renunciar a si mesma em nome de um bem maior:
salvar vidas em um cenário de pandemia. Assim tem sido a rotina de muitas
profissionais de saúde em contato com pacientes contaminados com o coronavírus.
Segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas), mulheres ocupam 70% dos
cargos nos setores social e de saúde em todo o mundo, e a maioria é também mãe
e responsável por ocupar-se da família. Ou seja, administram uma agenda que
concilia profissão e o cuidado com o outro.
Marie Claire foi ouvir cinco dessas profissionais, entre
médicas e enfermeiras. Sendo que a maioria delas nos dias 19 e 20 de março,
portanto antes da primeira morte oficial de uma profissional de saúde após
testar positivo para COVID-19, uma enfermeira de 40 anos que trabalhava na
cidade de São Paulo. Algumas preferiram conceder entrevista sob anonimato e sem
tornar público o hospital em que trabalham por medo de represálias.
"É pior para a gente que sabe de fato o que
acontece"
Jessica Aran, 28 anos, ginecologista e obstetra do SUS no
ABC, região metropolitana de São Paulo
"Tem muita suspeita de caso e disseminação, e a maioria
das pessoas são portadoras assintomáticas, então todos que trabalham no
hospital partem do pressuposto de que estão em contato com o vírus. Se aparece
uma mulher no pronto atendimento com sintomas de coronavírus, ainda que não
diagnosticada, para fazer um ultrassom, por exemplo, eu terei que fazer.
É difícil falar de uma situação em que você se isola das
pessoas que mais ama e que te dão suporte emocional, por causa da sua
profissão. É um ato de altruísmo fora do comum. Você se desliga de quem te dá apoio
para ajudar quem você não conhece. Faz parte da profissão. E fazendo isso você
sabe que está ajudando as pessoas do seu núcleo familiar também, mesmo que
indiretamente.
Não está sendo fácil, me isolar dos meus pais foi uma decisão
tensa de tomar. Eu morava com eles, mas meu pai é do grupo de risco por ser
hipertenso e tabagista, além da idade. Também tinha medo de passar o vírus para
minha mãe e ela para minha avó de 91 anos. Então os três foram para uma pequena
cidade do interior de São Paulo e eu fiquei aqui.
Com o meu namorado, evito ao máximo o contato físico. Ficamos
nesse impasse, se a gente se vê ou não, já que ele mora com a mãe, também no
grupo de risco. Temos nos visto nas minhas folgas, uma vez por semana.
Eu preciso de um apoio também, porque os médicos estão
tentando se unir, conversar, mas é uma união não calorosa. Falta abraço para te
acolher.
Passei da fase de ter medo de contaminar os outros para o
medo de me contaminar e desenvolver uma doença grave. Há estudos, ainda não
comprovados, que dizem que profissionais de saúde podem estar mais propensos a
contrair a forma mais grave do vírus. O estresse no trabalho está muito maior
do que já foi um dia. Temos medo o tempo todo. De voltar para casa, de se
contaminar no trabalho, ficamos ligados 100% do tempo. Desinfetar o carimbo, a
caneta, não entrar com a mochila dentro de casa, tirar a roupa, lavar a mão,
tomar banho, passar álcool. É uma neurose fora do comum. O receio e o peso que
eu teria de pensar que eu posso ter contaminado uma pessoa que eu amo é muito
grande.
Me sinto sozinha. Estou chorando comigo mesma. E não posso
transpassar isso para minha família. A minha saúde mental está super afetada.
Estou lidando mal e sinto que preciso de apoio psicológico. Agora vejo que tem
vários pontos de apoio para os profissionais da saúde. Devo ir atrás desse tipo
de serviço. Sabe, é pior para a gente que sabe de fato o que acontece."
"Não vou ver meu filho até tudo isso passar"
*Aline Motta, 31 anos, cirurgiã e plantonista de pronto
socorro nos setores privado e público de São Paulo
"Tenho um filho de 11 anos. Até quarta-feira ele estava
em casa comigo. Meu marido ainda está trabalhando normal também, até o fim da
semana. A gente tem grande chance de transmitir o vírus, caso sejamos
contaminados, então ele foi ficar na casa dos avós paternos porque vão todos se
isolar. Não vamos nos ver até o final de tudo. Não tenho nem ideia de quando
isso vai ser.
Outro problema é que meus avós maternos moram super perto da
minha casa, e eu e meu irmão que dávamos suporte para eles. A mulher do meu
irmão também é médica então a gente optou por não irmos na casa deles mais e
deixar as coisas que precisam na portaria. E eles ficaram muito chateados,
coitados. Não terei mais contato com meus pais também.
Nesse momento está todo mundo emotivo, assustado. Eu sou
jovem, tenho 31 anos, não tenho nenhum problema de saúde. Mas você sempre fica
com um pouco de medo de tudo, até de morrer. Se acontecer alguma coisa comigo,
não vou mais ter visto meu filho.
A gente vê a paramentação dos médicos no exterior e não temos
nada parecido no Brasil, ainda mais no setor público, no qual estão com medo de
disponibilizar equipamento para todos e faltar quando a situação piorar. Estou
levando minha própria máscara. Isso assusta. Você se sente impotente, com a
sensação de que vai pegar o vírus, só não sabe quando.
Estou trabalhando bastante e mantendo minha rotina, então
isso ajuda a segurar as pontas do ponto de vista psicológico. E sou bem
prática. Por outro lado, penso: tem que fazer o que é preciso, sobreviver a
isso tudo e dar uma festa quando passar. Não há outra opção.
Me chamou muita atenção quando falei com a minha manicure da
última vez. Ela comentou que está todo mundo com medo do vírus nas classes
altas e os autônomos estão com medo de passar fome. Isso foi o que mais me
tocou em toda essa situação. A gente precisa ajudar essas pessoas."
"Me excluí da vida social da minha família. Não estou
dormindo com meu marido. Meus filhos dão oi de longe"
Simone dos Remédios, 49, enfermeira do Hospital Regional da
Asa Norte, Brasília
"Essa semana trabalhei 80 horas. Tenho que dobrar
plantão por causa de atestado médico de funcionário que vai adoecendo e é
afastado.
Na equipe de enfermagem tem mais três mães, a única com filho
mais velho sou eu. Todo mundo fica muito temeroso, porque é uma doença nova,
não tem um protocolo de segurança fixo. Não tem cura. É um plantão muito tenso
e estressante.
Atendo uma paciente confirmada com coronavírus, internada há
11 dias. Os que não trabalham na UTI ficam até com medo de entrar para lidar
com ela.
Eu chego em casa, já tiro a roupa na porta, vou direto para o
banheiro. Não estou dormindo com meu marido. Meus filhos já compreendem e dão
oi de longe. Às vezes o mais novo chega e abraça porque esquece. Eu me isolo.
Nos dias de folga, não sento para almoçar com eles, eles saem e eu não vou junto.
Me excluí totalmente da vida social deles. Estou quietinha. Me sinto sozinha em
alguns momentos. Eles começam a rir, brincar, eu fico querendo saber o que é.
Mas é a profissão que eu escolhi. Eu gosto do que eu faço. Não tem outro jeito.
Fico lendo, fico ouvindo de longe, peço para eles falarem mais alto e dando
palpite de longe.
A equipe de enfermagem é muito mais exposta do que o médico.
Todo cuidado é da enfermagem: banho, necessidades fisiológicas, troca de
fralda, administração de remédio, verificação dos sinais vitais. Aí a gente
avisa o médico se acontece alguma piora. Em um plantão de 12 horas, por
exemplo, o médico vê o paciente uma vez. O restante dos cuidados é feito pela
enfermagem.
É SUS, então estamos começando a ter medo de faltar equipamento.
Cada hora começa um protocolo diferente. A gente estava sem o macacão para dar
banho e então a gente se virava. Pelo menos o básico a gente tem.
Tenho medo, principalmente quando estou voltando para casa.
Menos por mim e mais pela família, por meus filhos. A reclamação principal das
mulheres é na hora de cuidar dos filhos. Ninguém reclama do marido, coitados.
Tanto médicas quanto enfermeiras reclamam mais de se expor aos filhos."
"Será que me protegi o suficiente?"
Sandra Ramos*, 40 anos, enfermeira de UTI em um hospital
público de Brasília
"Sou casada e tenho um filho pequenininho, de 3 anos. De
início foi bem difícil. Por ser uma doença nova, isso mexe com a cabeça da
gente. Fica sempre aquela insegurança: será que lavei a mão o suficiente? Será
que me protegi o suficiente? O que a gente tem no hospital não é o material que
aparece no Japão nem nos Estados Unidos, mas a gente tenta usar tudo da maneira
mais adequada, mais correta.
Os 10 primeiros dias foram angustiantes, senti medo de
contaminar o meu marido e meu filho. Quem me deu confiança foi meu marido, que
me assegurou que nada aconteceria.
Eu parei de dormir com ele, passamos a usar banheiro
separado, a higienização pessoal aumentou muito mais. Agora tomo banho no
hospital, quando chego em casa tomo outro, lavo o cabelo e seco antes de ter
contato com a família. Depois desses 10 dias de distanciamento, meu marido
falou que era para a gente voltar a dormir junto. Ele me disse que eu só achava
estar doente, sem estar, e que aquilo deixava ele o meu filho nervosos. Falou
que nós três deveríamos ficar juntos para sempre.
Do meu filho eu também me distanciei nesses primeiros dias.
Sofri muito com isso. Desculpe estar chorando, é que a angústia fica guardada
no peito. Pedi para ele não me beijar, não me abraçar. Ele ficou angustiado,
olhava para mim e dizia: "Sou seu pacotinho de amor". Ficou nervoso.
Ele hoje me pergunta: 'Posso te beijar?', 'Posso te abraçar?'. Quer ficar junto
comigo.
Agora somos só nós três. A gente cortou o convívio com todo
mundo: amigos e família. Não saímos mais.
Essa semana recebi mensagem de um amigo que, apesar de estar
longe, disse que poderia fazer mercado para mim e ficar com meu filho quando eu
fosse trabalhar. Foi o primeiro que fez isso. Falou que estava orgulhoso de mim
por eu estar cuidando dos pacientes. Que eu era muito capacitada. Apesar dos
meus amigos estarem longe, são os melhores do mundo. Tem muita gente que se
afastou de mim por causa do meu trabalho, com medo de se contaminarem. Hoje
outra amiga ligou oferecendo para ficar com meu filho. É muito importante ter
gente perto e acreditar que vai da certo."
"No fundo estou feliz de poder ajudar de alguma
forma"
Augusta Geraissate, 36 anos, fisioterapeuta em um hospital
privado em São Paulo
"Sou fisioterapeuta respiratória e trabalho numa unidade
semi-intensiva, onde o número de pacientes contaminados vem aumentando. Senti
muita angústia no último plantão, ao me colocar no lugar desses pacientes,
diante de um diagnóstico assustador. Você se vê dentro de um quarto de
hospital, sem acompanhante, os seus sintomas vão piorando e então você é
transferido para a UTI. Todos os pacientes estão com medo, depressivos, com
saudade de casa.
O pensamento é: se acontecer do vírus se manifestar em mim,
terei uma gripe forte mas não me fará tão mal. Estou em paz dentro da minha
casa. Sou sozinha então estou acostumada a não ter alguém comigo. Me sinto bem,
acho que a gente tem que fazer um trabalho dentro da gente de que na verdade
somos privilegiados de termos uma casa, com tudo de melhor, de poder comprar
uma comida a mais e deixar aqui.
Tenho dois gatos e fui perguntar se havia qualquer risco de
transmissão e não há. Então isso me deixa mais tranquila. Temos que saber ficar
em casa, é um bem para a humanidade toda. Colocar as coisas em dia. Tento
trabalhar uma coisa boa dentro de mim porque quando você está ali no plantão,
das 7h às 19h, é uma loucura. É tudo muito novo, as equipes estão se adequando
ao atendimento, aos cuidados que a gente tem que ter, protocolo novo, então
você fica em alerta.
Minha preocupação é transmitir porque estou em contato diretamente
com pacientes infectados. Falo para meus amigos que certeza que tenho o vírus,
mas sem os sintomas.
Eu estou começando um namoro e a gente se viu recentemente.
Essa semana que o negócio piorou, conversei com ele, que não tem tanto medo
quanto eu. Mas entendeu que é um perigo que eu ofereço e a gente entrou em
quarentena também. O que também não consegui cortar é que saí hoje cedo para
correr. Sou maratonista. Cortei todos os treinos pesados, essa semana já não
rolou academia, natação. Mas bem de manhãzinha eu corro porque me faz falta.
Tenho amigos da corrida que falaram que não iam mais andar
comigo, meio em tom de brincadeira, mas real. Estou sem visitar nenhum amigo,
avó, tia. Mas todo mundo está passando por isso e a gente tem que trabalhar isso
dentro de nós de uma forma boa. Se eu estiver num estado de tensão permanente,
não consigo exercer bem meu trabalho.
Sinto muita falta de correr com meus amigos, de poder ir na
casa das pessoas, jantar fora. Uma coisa que me deixa triste é que meu aniversário
é na terça-feira e gosto muito de comemorar, mas esse ano não terá nada, nem
abraço. Esse ano não sei o que vou fazer. Quem sabe eu dou uma encontradinha
com o namorado novo, mas não sabemos.
Minha mãe mora em Florianópolis, ia vir para o meu
aniversário mas agora não vem mais. Ela falou que eu posso ter certeza de que
as pessoas estão preocupadas comigo, mas acima de tudo orgulhosas pela
profissão que escolhi, por tudo que estou encarando. Fiquei tão confortável com
as palavras dela. Nada é à toa. Eu escolhi cuidar de pessoas e no fundo estou
feliz de poder ajudar de alguma forma."
*Pseudônimos foram usados a pedido das entrevistadas.
Marie Claire
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