O dilema que já assombrou médicos na Itália vem sendo agora
enfrentado por profissionais de saúde em várias cidades do Brasil. Diante do
colapso de hospitais públicos, com menos vagas de UTI do que o necessário, quem
está na linha de frente do combate à Covid-19 precisa escolher quem terá
direito a um respirador — e a chance de sobreviver. Treinado para salvar vidas
e ainda sob o impacto de ter visto um idoso, que precisava do aparelho, morrer
sentado em uma cadeira, no mês passado, pois nem macas para todos os pacientes
havia na unidade, um cirurgião que trabalha em dois grandes pronto socorros de
Manaus diz se sentir “conivente com assassinato” a cada plantão.
Há duas semanas , o médico, que pediu para não ter o nome
revelado, enfrentou outra situação dramática. Um homem, com quadro gravíssimo
de insuficiência respiratória, precisava de respirador, mas não havia mais
equipamento vago no hospital. A equipe decidiu fazer um tratamento paliativo
para dor, mas descobriu que a morfina também estava em falta. O homem morreu,
horas depois, sem receber qualquer medicação para aliviar seu sofrimento.
Traumatizado por ter que fazer quase diariamente uma “Escolha
de Sofia” (uma referência ao romance do americano William Styron em que uma mãe
polonesa precisa escolher qual filho vai ter a chance de sobreviver aos
horrores do nazismo), o médico pediu demissão de um dos empregos na rede
estadual. Foi a maneira que encontrou para diminuir o estresse diário:
— Não sou o único. Muitos estão deixando os plantões para ir
a outros estados (com melhores condições de trabalho) ou para trabalhar na rede
privada. No dia em que o velhinho morreu sentado na cadeira, percebi que não
aguentava mais.
Decisão compartilhada
Em Pernambuco, estado com 95% de leitos ocupados, o
hematologista Elton Menezes tem procurado dividir o peso da decisão. Ao se
deparar, no Dia das Mães, com duas vítimas do novo coronavírus, uma mulher de
70 anos, fumante, e um homem de 40, ambos em estado grave, disputando o único
respirador disponível no hospital, ele convocou toda a equipe para opinar:
— A primeira coisa que vem na sua cabeça é se é justo
escolher apenas pela idade. Ela merecia menos do que do ele? Chamei enfermeiros
e outros médicos e decidimos que o paciente mais novo aguentaria sem a
ventilação por um pouco mais de tempo. Conseguimos um aparelho para ele, mas,
até esse final feliz acontecer, foram sete horas de muita aflição.
Pontuação decide vaga
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) passou a
discutir um protocolo para tentar nortear os profissionais de saúde. Ele se
baseia numa pontuação que leva em conta a gravidade de seis áreas, como
respiratória e cardiovascular, e a existência de doenças preexistentes. Quanto
menor for o resultado, mais chances o paciente tem de conseguir um leito de
UTI.
O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco adotou normas
semelhantes às da AMIB e elaborou uma ferramenta online para os médicos, que
calcula a pontuação de pacientes.
— O médico que trabalha nas emergências vai poder usar os
pontos para se embasar. Ele tem autonomia de decisão, mas estará seguro. Dá um
respaldo — diz Zilda Cavalcanti, presidente do Conselho de Pernambuco.
No Rio, documento semelhante aguarda a aprovação do
secretário de Saúde, Fernando Ferry.
Lotação antiga no SUS se agrava agora
No Recife, a médica Rousiane Cavalcanti, que trabalha na rede
estadual e atua como voluntária em um hospital de campanha, diz que a falta de
vagas sempre existiu no SUS, mas que, agora, se tornou ainda mais grave.
— Aumentou o caos em um serviço que já estava saturado. Os
plantões têm sido devastadores. Exaustivo é uma palavra generosa para
descrevê-los.
Rousiane descreve a sensação de fracasso quando perdeu um
paciente que não teve respirador:
—Chorei a semana inteira por ter que tomar essa decisão. E se
recuperar dessa escolha dilacera você, porque temos que voltar para o hospital
sabendo que vai voltar a acontecer.
No Rio, onde, na sexta-feira à noite, 339 pessoas aguardavam
por uma vaga em UTI, uma médica que trabalha no Hospital Ronaldo Gazzola,
referência para o tratamento de Covid-19, afirma não ter se deparado com a
falta de respiradores, já que o hospital só recebe pacientes quando há vagas
disponíveis. Lá, conta, o drama é outro. Não há hemodiálise para todos que
necessitam.
— Temos um número restrito de aparelhos e precisamos fazer
revezamento. Na semana passada, havia seis aparelhos para todo o hospital, e
dez pacientes precisando. Quando vemos um paciente extremamente grave,
infelizmente, às vezes, a gente nem tenta.
A Secretaria municipal de Saúde do Rio negou, em nota, que
não haja aparelhos suficientes no hospital. O Conselho Federal de Medicina
elaborou em 2016 uma documento que estabelece prioridades na admissão em UTIs
de pacientes “que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta
probabilidade de recuperação”. A resolução não especifica, no entanto, que
critérios devem ser levados em conta e passa para os gestores da área de saúde
de cada estado a responsabilidade de elaborar protocolos próprios.
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