Pesquisadores e médicos atentos ao problema da resistência de bactérias e fungos acreditam que o uso desenfreado de antibióticos no tratamento de covid-19 tornará ainda mais drástico o cenário atual, em que já há falta de antibióticos capazes de combater certas doenças e micro-organismos —que, por vários fatores, têm se mostrado fortes e hábeis em driblar esses medicamentos.
Antes da pandemia, a situação já era preocupante: no cenário
mais drástico, até 2050, a chamada resistência microbiana (doenças resistentes
a antibióticos) poderá estar associada a 10 milhões de mortes anuais, afirmou a
Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2019. Acredita-se que pelo menos 700 mil
pessoas morrem por ano devido à essa resistência microbiana.
Muitos problemas comuns de saúde, como pneumonia e infecção
urinária, já têm seus tratamentos dificultados por conta da resistência. Há
também condições de saúde mais graves afetadas pelo problema, como a
tuberculose multirresistente (com resistência a pelo menos dois antibióticos,
isoniazida e rifampicina).
Mas inúmeros estudos pelo mundo têm mostrado que, mesmo sem
eficácia e necessidade comprovadas para combater a covid-19, antibióticos foram
amplamente usados durante a pandemia —e a “conta” poderá ser cobrada nos
próximos anos com uma resistência microbiana ainda mais aumentada.
“Já tínhamos o problema da resistência microbiana antes. Em
virtude da covid-19, muitos antibióticos foram receitados. Em um futuro não
muito distante vamos ter um problema mais sério do que já teríamos”, resume
Victor Augustus Marin, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Unirio) e pesquisador na área de ciências biológicas. “Vamos ver
efeitos daqui a seis meses, daqui a um ou dois anos, quando pacientes com
outras doenças chegarem ao hospital. O médico vai prescrever um antibiótico que
pode não funcionar naquele paciente, ou vai aumentar a resistência (de
micro-organismos presentes no grupo da pessoa)”, prevê Marin, responsável pelo
Laboratório de Controle Microbiológico de Alimentos da Escola de Nutrição
(Lacomen) da universidade.
Preocupada com esse futuro, a OMS publicou em maio um guia
para tratamento de covid-19 que, entre outros pontos, recomendou expressamente
a não utilização dos antibióticos no tratamento da nova doença em casos
suspeitos ou leves. Mesmo para casos moderados, a entidade indicou que o uso só
deve ser feito após indícios de uma infecção bacteriana. “O uso generalizado de
antibióticos deve ser desencorajado, uma vez que sua aplicação pode levar a
taxas maiores de resistência bacteriana, o que vai impactar o volume de doenças
e mortes durante a pandemia de covid-19 e além”, diz o documento da OMS.
Médico do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, Luciano Cesar
Pontes de Azevedo explica que o que se observa nos hospitais e tem sido
documentado em pesquisas científicas pelo mundo é o uso de antibióticos com a
justificativa não de tratar a infecção causada pelo coronavírus diretamente
—mas sim uma eventual infecção concomitante por alguma bactéria. “Isso (uso de
antibióticos no tratamento de covid-19) vem muito do fato de que é uma doença
nova, e ninguém conhecia a taxa de coinfecção (por bactérias). Para influenza,
a gripe comum, pode ter coinfecção em 30 a 40% dos casos. Para covid-19,
estudos têm sugerido de 5 a 7,5% de coinfecção”, explica Azevedo, que trabalha
com medicina intensiva e medicina de emergência e tem doutorado pela Universidade
de São Paulo (USP) e pós-doutorado pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca).
“Quando se sabe que a taxa de coinfecção é baixa, não precisa passar
antibiótico para todo mundo com covid —como quem está em ambulatório, ou se
tratando em casa.”.
A conduta de médicos e hospitais deve ser receitar
antibióticos apenas após uma infecção por bactérias ou fungos realmente ser
constatada, preferencialmente por exame de cultura bacteriana e ainda exames
que permitem detectar genes de resistência a certos antibióticos. Diversas
pesquisas mostram que essa prudência não foi adotada por muitos profissionais e
hospitais.
FONTE:O SUL
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