Duas décadas e meia se passaram desde aquele triste 11 de outubro em que o Brasil perdeu Renato Russo para a Aids. Até hoje, a ausência do ícone do rock nacional faz os fãs de sua legião reafirmarem uma saudade que dura um pra sempre que nunca acaba. Hoje, é possível até apostar que ele estaria criando uma nova letra para “Que país é esse?”, roteirizando uma nova “Faroeste caboclo” ou versando sobre sua sexualidade, como “Meninos e meninas”. Provavelmente, não diria que somos tão jovens nem lamentaria um tempo perdido.
Desde a
despedida do artista, fãs e estudiosos revisitam sua obra e debatem o legado deixado.
É o caso da brasiliense doutora em Literatura Brasileira Julliany Mucury, que
está lançando o livro “Renato, o Russo”, onde mostra as diferenças entre o
Renato Manfredini Jr. e o artista que todos conhecem.
— (A divisão
entre os dois “Renatos”) Começa no “The 42nd Street Band”, livro que ele
escreve com 15, 16 anos, em que narra uma banda imaginária. Desenha toda a
trajetória dela, músicas, shows e coisas que o vocalista Eric Russell ia
escrever. Ele já tinha essa projeção, sabia o que queria. De fato, ele vestia
uma persona para estar na frente da imprensa ou nos palcos — avalia a autora,
que completa: — Partir aos 36 anos no auge deixa aquela coisa de que não deu
tempo de pisar na bola. Tudo que ele fez até ali é muito valoroso. Quando ele
escreve “A tempestade”, que é um álbum de despedida, tem uma sequência de
letras tão dolorosa e profunda. É como se ele registrasse o início, o meio e o
fim da vida.
Companheiro de Legião Urbana, o baterista Marcelo Bonfá também destaca essa capacidade que Renato tinha de absorver o mundo e colocá-lo no seu estilo, traduzindo coisas universais:
— As letras
dele são quase como um oráculo. São releituras de grandes ensinamentos, do que
a humanidade foi aprendendo ao longo da história que ele coloca da forma dele
como ser humano, com a sua personalidade. Daqui vou pensando nele e mandando
vibrações. Mas acredito que ele não esteja precisando, tenho certeza de que ele
está em um lugar foda.
No lugar em
que está, Renato também deve estar se sentindo mais confortável, já que,
durante sua história terrena, ele não se encaixava em algumas convenções.
Muitas vezes, foi polêmico. E seu alter ego artístico, certamente, pesou na
construção dessa personalidade. Julliany aponta que, no fundo, Renato sabia que
sua obra e seus planos eram maiores do que ele.
— Renato
criou uma magia em torno dele mesmo. Isso é algo pensado, uma estratégia de
sobrevivência. O Renato Manfredini Jr. dependeu muito tempo de remédios, que,
junto ao álcool, fazia essa bomba. Além da maconha e da cocaína depois. Para
ele dar conta dos seus planos, recorreu a vários subterfúgios. O Dado
(Villa-Lobos, guitarrista da banda) descreve o Renato assim na sua autobiografia,
como alguém que não interagia com a banda nos hotéis, que gostava de ser
recluso. Ele sempre foi o sábio, o ancião da galera, a figura à frente do
tempo. Era difícil para ele — pontua a autora.
Mas, mesmo
com uma grande obra em mente, Bonfá lembra que o amigo não deixou seu ego
inflar, como acontece com muitos artistas.
— Se não
tiver um autocontrole do que é a vida real, é muito fácil o cara se perder
nessa e se deixar ser levado — observa o músico.
Em meio aos
planos que tinha, Renato também trazia um lado que a autora chama de
“messiânico”, uma forma de agregar sua comunidade de fãs e quase transformar
sua Legião em religião.
— Penso
sempre que nada em que o Renato se colocou foi por acaso. Não à toa ele
recorreu muito à Bíblia, como em “Daniel na cova dos leões” e “Monte Castelo”,
com a carta de Paulo aos Coríntios na letra. Ele realmente acreditava que
poderia influenciar a vida das pessoas — avalia Julliany.
De fato,
Renato influenciou. E segue influenciando, mesmo após 25 anos da sua morte. Com
o legado, os fãs continuam aprendendo.
— Ele sempre
falava sobre acreditar nos seus sonhos. Se os pensamentos têm esse dom tão
transformador, devemos fazer na direção da coletividade. Acreditar era só o
início do que o Renato estava querendo dizer — conclui Bonfá.
Uma das
canções mais emblemáticas de Renato Russo, “Faroeste caboclo” foi escrita
quando ele tinha apenas 19 anos. A longa letra chegou a virar filme de mesmo
nome, em 2013, com Fabrício Boliveira como protagonista.
Na Brasília
dos anos 80, Renato convivia com filhos de diplomatas, jovens que moraram em
diferentes partes do mundo e tinham LPs raros, destaca Julliany Mucury.
Renato
tentou suicídio e colocou isso nos versos de “Índios” (“Eu quis um perigo e até
sangrei sozinho, entenda”). Depois, teve os movimentos comprometidos para tocar
no palco.
Nos últimos tempos, a Legião Urbana se viu em meio a um embate judicial. Filho de Renato Russo, Giuliano Manfredini queria impedir que os outros integrantes, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, usassem o nome da banda em shows. Em junho deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu ganho de causa para os músicos, que agora estão livres para usar o nome do grupo de que fizeram parte. No entanto, por enquanto ainda não há previsão de novas apresentações.
— Saímos
meio machucadinhos disso tudo. Estavam me jogando contra o Renato e ele contra
todo mundo. A gente teve que rebater coisas muito óbvias. Tivemos que nos
debruçar em momentos que só eu, Dado e Renato estávamos presentes. Estamos
dando um tempo e curtindo uma coisa que foi uma luta — explica Bonfá, que
também reconhece que, uma hora, essa ferida vai sarar.
A briga
certamente foi um episódio triste da história da banda tão emblemática na
música brasileira. Autora de “Renato, o Russo”, Julliany Mucury ressalta a
importância dos dois artistas na história de Renato e da banda.
— Sinto uma
profunda tristeza com tudo isso. Primeiro pela mensagem que Renato queria
deixar para o mundo de que o mais importante eram a família e os amigos. Eles
três eram tão orgânicos, tinham muito respeito um pelo outro. O Renato não era
fácil de lidar, era temperamental. Temos que pensar que quem segurou as pontas
foram o Dado e o Bonfá. O Fê Lemos (baterista do Capital Inicial e da Aborto
Elétrico, banda que ele teve com Renato) deu uma baquetada no Renato, e eles
não quiseram mais saber um do outro — lembra a pesquisadora, que ressalta: — De
mais de uma centena de músicas, só achei 29 de autoria só do Renato. Quando
eles voltam com quem quer que seja como vocal, é muito forte. É como se o
Renato reencarnasse. A Legião não é Renato Russo apenas. E ele era tão
apaixonado pelo Giuliano, foi uma descoberta de paternidade linda. Acho que
pode ter havido uma má orientação dele talvez.
FONTE:EXTRA ONLINE
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