O presidente e seu entorno persistem em um embate político contínuo com alvos que vão de governadores a cientistas, além de Judiciário e Congresso
Manipulação de afetos, política do negativo e estratégia da cisão são algumas das expressões que psicanalistas ouvidos pela reportagem usam para se referir à estratégia do presidente Jair Bolsonaro de manter seu governo e seus apoiadores em confronto permanente.
Mesmo com o país imerso em uma crise sanitária que já deixou
mais de 320 mil mortos, o presidente e seu entorno persistem em um embate
político contínuo com alvos que vão de governadores a cientistas, além de
Judiciário e Congresso.
A tática contribui para manter mobilizada sua base eleitoral
em um momento em que o governo sofre críticas sucessivas pela gestão da
pandemia do coronavírus e enfrenta a perspectiva de uma deterioração na
economia.
A reportagem procurou um grupo de psicanalistas de diferentes
abordagens e trajetórias profissionais para questioná-los sobre o comportamento
do presidente à frente do cargo.
Há um ano, no início da crise sanitária, o jornal Folha de
S.Paulo já tinha ouvido esses profissionais em reportagem sobre a postura dele
à época e sua recusa em admitir a gravidade da crise. Na ocasião, alguns dos
traços do comportamento mencionados eram indícios de lógica paranoica e estilo
onipotente.
Desde então, uma das atitudes mais simbólicas do presidente
foi a maneira desrespeitosa com a qual se referiu aos mortos pela Covid-19.
Bolsonaro já disse, sobre os óbitos: "E daí? Lamento. Quer que eu faça o
quê?", "Não sou coveiro" e "Vão ficar chorando até
quando?".
Parte do grupo de especialistas vê nessa insistência um
interesse em gerar inquietação na sociedade.
"Se o sujeito quer instaurar o caos, ele não pode
demonstrar qualquer traço de empatia. Porque a empatia do líder faria com que
houvesse empatia em alguma medida no tecido social. Eu apostaria também que
isso seria um cálculo", afirma o professor Marcelo Galletti Ferretti,
professor da Escola de Administração da FGV (Fundação Getulio Vargas).
O professor diz que não se pode jamais olhar para os
movimentos do presidente "como pura espontaneidade" e que também
essas atitudes são uma forma de mobilizar e indignar "aqueles que o
desdenham".
Para a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Tania Coelho dos Santos, que é doutora em psicologia clínica, Bolsonaro mostra
"um imenso despreparo para governar" e uma incapacidade de
representar sua condição de chefe de Estado.
"Como todo líder populista, ele não sabe desempenhar o
seu papel de representante eleito pelo voto. Sente-se cobrado pessoalmente
pelos efeitos do que considera uma tragédia alheia à sua vontade e por isso
reage com irritação como se estivesse sendo injustiçado."
Segundo a professora, o presidente "parece gostar de
bancar o homem corajoso, que despreza os riscos da 'gripezinha'".
Mesmo sob intensas críticas no meio político e sem conseguir
montar uma base consistente no Congresso, Bolsonaro tem sido bem-sucedido até
agora em manter um patamar considerável de apoio nas pesquisas de popularidade,
o cacifando para a eleição do próximo ano.
Segundo o Datafolha, o percentual da população que considera
seu governo ótimo ou bom nunca esteve abaixo de 29%. Na pesquisa mais recente,
nos dias 15 e 16 de março, o índice foi de 30%.
O professor Tales Ab'Saber, da Universidade Federal de São
Paulo, diz que Bolsonaro busca um afastamento radical de uma parte da sociedade
em relação ao restante e mantém suas ações políticas "permanentemente no
dissenso", a ponto de encarar uma crise de saúde pública como uma guerra.
Chama esse estilo de "política da impertinência" e
diz ver um desrespeito a mínimos contratos sociais. "A lógica de
comunicação dele é para manter esse 30% [de apoiadores] e ele tem mantido. A
política inteira dele é para isso. Não tem outra."
A professora Miriam Debieux Rosa, da USP e da Rede
Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política, lembra que existe um
grupo dentro do Palácio do Planalto batizado de "gabinete do ódio",
composto por assessores, tido como responsável por impulsionar material
pró-governo e ataques.
Ela vê isso como uma face de uma "política dos
afetos", em que a animosidade é incitada e todo o entrave ao país passa a
ser os opositores.
"Para pôr uma cortina de fumaça nessa total falta de
interesse na gestão do país como um conjunto, há uma manipulação política da
gestão pelo ódio."
O escritor e psicanalista Mário Corso discorda quanto a haver
uma grande tática política nas atitudes errantes da Presidência e diz que,
nessas práticas, não há como "imaginar que está por trás um
Maquiavel" –pensador morto em 1527 e fundador da ciência política moderna.
Para ele, se houvesse tal genialidade política, o presidente
teria ao menos conseguido criar seu novo partido, algo que políticos muito
menos expressivos já fizeram.
O presidente mantém sua popularidade em patamares razoáveis,
diz o psicanalista, por apostar em uma política de viés negativo, que promete
uma volta ao passado, "em que o politicamente correto não existia".
"É algo que não precisa criar. É só usar do
ressentimento e da impotência, do preconceito. É muito fácil fazer uma política
do preconceito. É difícil fazer uma política que inove, não a que puxa para
trás."
O menosprezo à gestão da crise sanitária, a contínua
exposição aos riscos e a resistência em relação à vacinação levaram desde o ano
passado seus opositores a questionar as condições mentais do presidente de
permanecer no posto.
O PDT, por exemplo, protocolou em março uma representação na
Procuradoria-Geral da República pedindo a interdição do presidente. O partido
argumentou que o mandatário age na "contramão dos atos que uma pessoa em
plena saúde mental" manteria.
Um dos principais alvos de Bolsonaro, o governador de São
Paulo, João Doria (PSDB), chamou o presidente de "líder despreparado e
psicopata" em entrevista à CNN Internacional no último dia 22.
Para Marcelo Galletti Ferretti, essa
"patologização" é ruim e favorece estigmas. "Não é a estratégia
de dizer que ele é um psicopata que vai adiantar", diz.
A psicopatia é uma doença mental caracterizada pelo
sentimento de desprezo por obrigações sociais, falta de empatia e propensão à
agressividade.
Mário Corso diz que um indicativo desse transtorno é haver um
menosprezo pela lei.
"A gente sabe das intenções golpistas dele [Bolsonaro].
Se ele pudesse redesenhar, fechar o STF, o Congresso, fazer a lei que quisesse,
seria o sonho dele. A gente lê nas entrelinhas esse desprezo pela Constituição,
pelo que é estabelecido e por impor uma vontade dele."
Para Tales Ab'Saber, há hoje uma estrutura institucional
complexa, que inclui interesses econômicos e multiplicidade de vozes na
sociedade, que evita com que um líder autoritário "imponha um AI-5 porque
ele quer".
O professor diz que a democracia não pode "eleger um
antissocial" sob o risco de pagar um preço alto, como ocorreu nos Estados
Unidos antes de Donald Trump deixar a Presidência, em janeiro.
"Esse tipo de sujeito da política não acredita no comum,
só acredita no próprio desejo. E faz de tudo para passar por cima de todas as
outras regras, de todos os outros jogos, outros compromissos. Nem mesmo uma
orientação científica comum para uma pandemia são capazes de aceitar. Ele quer
gerir o mundo, sem outro. Esse é o antissocial."
FONTE: FOLHAPRESS
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